Para conseguir produzir esse texto, preciso retomar uma memória pessoal que exemplifica o impacto da imaginação na minha vida. Minha experiência com a imaginação consciente começou por volta dos 15 anos, quando eu era um leitor compulsivo de obras místicas. Em uma delas, “Dogmas e Rituais de Alta Magia”, de Eliphas Levi, afirma que a imaginação é o principal agente mágico.
Levi dizia:
“A inteligência e a vontade do homem são instrumentos de um valor e de uma força incalculáveis. Mas a inteligência e a vontade têm por auxiliar e por instrumento uma faculdade muito pouco conhecida e cuja onipotência pertence exclusivamente ao domínio da magia: quero falar da imaginação, que os cabalistas chamam o diáfano ou o translúcido. Efetivamente, a imaginação é como que o olho da alma, e é nela que as formas se desenham e se conservam, é por ela que vemos os reflexos do mundo invisível, ela é o espelho das visões e o aparelho da vida mágica: é por ela que curamos doenças, que influímos sobre as estações, que afastamos a morte dos vivos e que ressuscitamos os mortos, porque é ela que exalta a vontade e que lhe dá domínio sobre o agente universal.” (Levi, p. 55)
Impactado por essa leitura — e influenciado por um filme sobre anjos e demônios que havia assistido na época — comecei a imaginar dois personagens que me acompanhavam para todo canto. Um deles, que fazia o papel de protetor, era representado por John Travolta. O outro, que representava meu desejo e impulso, era encenado por Eric Stoltz. Esses personagens dialogavam comigo constantemente. Me aconselhavam, me protegiam, me ajudavam a pensar antes de agir. Eram vozes internas, dramatizadas e encenadas.
Mais tarde, ao conhecer as tópicas de Freud — Id, Ego e Superego — tive um lampejo de identificação: “Meu Deus, Freud teve a mesma brisa que eu!”
Stoltz representava o Id: impulsivo, desejante, instintivo. Travolta, o Superego: moralizador, protetor, julgador. Eu, como Ego, mediava esse diálogo interno, ainda que de forma inconsciente à época.
Esse era o meu pensamento:
[Ego] Será que eu devo ou não devo beijar essa garota?
[Stoltz – Id] Vá logo! Não perca tempo! Essa é a hora!
[Travolta – Superego] Você está louco? Ela é namorada do seu amigo! Por favor, não!
Pode parecer uma alucinação, mas era apenas imaginação operando de forma estruturada — um exercício saudável de autorregulação emocional. Foi nesse momento que compreendi que minha mente era habitada por personagens com desejos e funções distintas, e que, ao escutá-los, eu podia tomar decisões mais conscientes.

Mais adiante, na minha prática clínica, encontrei na Terapia Cognitivo-Comportamental de Aaron Beck o conceito dos Pensamentos Automáticos. Sempre achei difícil trabalhar esse conceito apenas com psicoeducação, pois ele é abstrato demais para alguns pacientes.
Quando conheci a Terapia do Esquema de Jeffrey Young, me deparei com os Modos Esquemáticos. Para mim, esse é o ponto mais potente de toda a abordagem. Esses modos, que chamo carinhosamente de “vozes modais”, são manifestações mentais que emergem quando um esquema emocional é ativado. São dez modos principais: quatro infantis (vulnerável, raivosa, impulsiva/indisciplinada e alegre), três estratégias de enfrentamento disfuncionais (evitativo, hipercompensador e resignado), dois modos parentais (punitivo e exigente) e o modo do Adulto Saudável (função egóica).
Foi a partir dessa compreensão que elaborei um protocolo chamado: a Sala de Controle. Nessa sala imaginária, o Adulto Saudável (representado por mim mesmo) se reúne com os outros nove modos para deliberar sobre problemas complexos e encontrar uma resposta equilibrada.
Esse exercício, que faz parte do capítulo de Manejo de Emoções em meu livro, é um dos principais recursos que ensino a meus pacientes. Aqueles que conseguem aderir ao protocolo e usar a imaginação para construir esse cenário interno apresentam respostas emocionais mais rápidas e eficazes. Já os que têm dificuldade em imaginar de forma lúdica levam muito mais tempo para alcançar esse espaço de autorregulação.
Sobra então uma pergunta que me intriga:
Por que os adultos têm tanta dificuldade para imaginar?
Há algo profundamente comovente — e ao mesmo tempo alarmante — em perceber o quanto é custoso, para a maioria dos adultos, simplesmente imaginar. Não falo aqui da fantasia ociosa ou da fuga da realidade, mas da capacidade genuína de projetar possibilidades, criar cenários alternativos e dialogar com futuros desejáveis. Essa faculdade, tão viva na infância, parece ser sistematicamente podada à medida que envelhecemos.
As crianças sonham com o impossível como se fosse apenas uma questão de tempo. Elas não perguntam se “podem”, mas sim “como fariam”. Elas criam mundos com facilidade porque ainda não foram treinadas a obedecer às fronteiras do real. Já o adulto médio, ao ser convidado a imaginar algo simples — como uma conversa consigo mesmo e com as “vozes de sua cabeça”, um desfecho diferente para uma situação passada ou uma versão mais corajosa de si —, paralisa. Ele coça a cabeça, ri sem graça, diz “nunca pensei nisso”. E é verdade: não pensou. Não teve tempo. Não foi ensinado. Não foi permitido.
Essa atrofia imaginativa não é mero acaso do desenvolvimento humano. Ela é, em grande parte, consequência de um modelo de subjetivação capitalista que reduz o sujeito à função de produzir, consumir e performar. Nesse regime, sonhar é ineficiente. Imaginar, perigoso. O tempo deve ser ocupado com produtividade; os desejos, alinhados ao que é vendável. O futuro, em vez de ser desenhado pela sensibilidade do indivíduo, é comprado em parcelas. A utopia virou marketing.
O sujeito capitalista é um “eu cansado”, como diria Byung-Chul Han: esgotado pela exigência de ser tudo o tempo todo, mas completamente vazio de si. Sem tempo para cultivar interioridade, perde o acesso ao próprio mundo interno. E sem mundo interno, não há cenário a ser visitado. Não há sala mental onde se possa sentar e perguntar: “o que eu desejo de verdade?” Assim, o exercício de imaginar se torna um esforço hercúleo — quando deveria ser uma respiração natural do espírito.
Nesse contexto, a frase de Paulo Freire ressoa como um convite à resistência: “Enquanto você sonha, você está fazendo o rascunho do seu futuro.” Sonhar, nesse sentido, é um ato político. Imaginar é um gesto revolucionário. Construir cenários internos é reapropriar-se da própria existência e dizer, com ousadia: “Eu posso desejar mais do que me foi oferecido.”
Recuperar essa habilidade exige tempo, acolhimento e coragem. E é nesse lugar que, como terapeuta, convido meus pacientes a voltarem a sonhar e imaginar, ainda que timidamente, ainda que com medo. Porque sonhar não é fugir da realidade. É, antes, redesenhá-la de dentro para fora.
Levi, E. Dogma e Ritual de Alta Magia. São Paulo, Madras, 1998