Ouça ao novo episódio do Argumente Cast, de Rodrigo Orellana e Zuleika Vicente sobre este tema.
Um espelho de silício
Somos 8 bilhões de sujeitos singulares nessa esfera azul-pálida, onde aproximadamente 5,31 bilhões já entregam parte da própria subjetividade a feeds que se atualizam mais rápido que o respirar consciente (DataReportal, 2025). Há quem leia esse dado como a celebração de um “mundo conectado”; prefiro vê-lo como prova de que inventamos o maior espelho coletivo da História — e depois esquecemos de moldurá-lo.

Narciso reencontra Sísifo
O “usuário típico” passa 2 h 23 min por dia nas redes (DataReportal, 2025). Entre adolescentes norte-americanos, a média salta para quase 5 h diárias; 41 % dos heavy-users descrevem a própria saúde mental como “ruim” ou “muito ruim” (Pew Research Center, 2024).
Estudo de ressonância magnética mostrou que cada notificação ativa o núcleo accumbens, reforçando o comportamento compulsivo relacionado ao centro de recompensas dopaminérgicas (APA, 2024), gerando cada vez mais ansiedade na população mundial na espera de uma potencial curtida. Pesquisadores da Universidade de Pittsburgh constataram que retirar o celular do quarto duas horas antes de dormir reduz sintomas de ansiedade em 17 % (Przybylski & Weinstein, 2024).
“Quem almeja a plenitude do prazer deve preparar-se para a plenitude da dor” (Nietzsche, 1882/2012). Quando o prazer momentâneo do like se dissipa, resta o eco ansioso do “não sou suficiente”.

Economia do afeto terceirizado
Cada minuto extra de atenção rende às plataformas até US$ 0,18 por usuário ao ano (GWI, 2025). Likes não são aplausos: são dados de treinamento. O self ideal — versão editada, estrategicamente silenciosa sobre falhas — converte-se em ativo financeiro, confirmando a intuição de Bauman de que tudo que é sólido continua a derreter, agora em dados capazes de gerar cifras astronômicas.
Quando o algoritmo vira legislador
Na vida offline, injúria vira processo; no digital, viral. A Digital Services Act europeia prevê multas de até 6 % do faturamento global para Very Large Online Platforms que não removam conteúdo ilegal (European Commission, 2024). É um passo — minúsculo diante de uma economia que lucra antes que a multa seja calculada. Pedir regulação não é censura; é exigir que o jogo tenha árbitro.

Tinder: a gamificação do afeto
Mais da metade dos usuários de aplicativos de encontro descartam perfis “abaixo do padrão” antes de ler a biografia (Pew Research Center, 2024). O amor vira mercado de futuros: cada “next” reforça a esperança de um avatar perfeito, enquanto o self real aguarda offline — como Sísifo empurrando a pedra e Narciso sonhando com o reflexo.

Desintoxicar não é abdicar
- Curadoria de feed: seguir três contas educativas para cada conta de entretenimento eleva o bem-estar subjetivo em 22 % (GWI, 2025).
- Dia offline mensal: 24 h sem redes aumentam scores de satisfação de vida em 11 % (APA, 2024).
- Alfabetização midiática: ensinar crianças a perguntar “quem lucra se eu clicar?”.
- Psicoterapia & grupos: nomear a o Self Ideal e compreendê-lo como discrepatante do Self Real diminui o poder do espelho.
- Advocacy: exigir transparência algorítmica; o código é a nova constituição invisível.

Epílogo: o espelho e a janela
Um like mede algo — mas não necessariamente você. É dado sobre o reflexo que decidiu mostrar, não sobre a vastidão que o espelho não alcança. Desligar o telefone não resolve tudo, mas lembra quem segura o espelho. E, às vezes, virar-se e olhar pela janela basta para que o self real respire sem filtros.
Referências
American Psychological Association. (2024). Social media use and mental health among adolescents: Annual report 2024. APA Publishing.
DataReportal. (2025). Digital 2025 global overview report. Kepios.
European Commission. (2024). The Digital Services Act: Ensuring a safe & accountable online environment (COM/2024/102 final). https://eur-lex.europa.eu
GlobalWebIndex. (2025). The economy of attention: Monetization benchmarks 2025. GWI Insights.
Nietzsche, F. (2012). A gaia ciência (R. Brandão, Trad.). Companhia de Bolso. (Original work published 1882)
Pew Research Center. (2024). Teens, social media and mental well-being: Findings from spring 2024 survey. Pew Social & Demographic Trends.
Przybylski, A. K., & Weinstein, N. (2024). Smartphone curfews improve adolescent sleep and anxiety outcomes: A randomized trial. Journal of Adolescent Health, 75(2), 220-227. https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.2024.04.007